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O Estado e o futuro da aviação comercial

Ciosos da autonomia nacional, os Estados dificilmente terão o desejo de partilhar a sua autoridade em aviação comercial, “como seria corrente noutras áreas da actividade económica” (Eugene Sochor, 1991). Cedo se aperceberam do potencial económico-político da aviação nas relações internacionais, na difusão do poder persuasivo, na projecção da imagem, nas relações quase diplomáticas.

A Carta da Aviação Civil (Convenção de Chicago de 1944) estipula que “toda a aeronave empregue na navegação aérea internacional levará distintivos e registo da sua nacionalidade”, sendo o Estado a figura hierárquica central em aviação civil, posição imutável até aos nossos dias. Segundo Chang e Williams (2001), “as cláusulas de nacionalidade servem de base ao cerne dos acordos bilaterais”. O Estado, numa sociedade global anárquica, isto é, sem um poder ordenador superior, exerce as funções de negociador nos acordos internacionais, bilaterais ASA (Air Service Agreements), ou Open Skies, de Céus Abertos, estes bem mais liberais e flexíveis, cuja forma poderá ser de acordos bilaterais ou multilaterais.
As companhias de aviação ocupam uma posição de subordinação, ao operarem de acordo com os termos negociados pelos Estados, como no referente a rotas, capacidades, frequências, aeroportos ou preços. A dependência também se traduz na necessidade da obtenção de um certificado de licenciamento (COA), adstrito a um espaço soberano. Compete assim a cada Estado verificar os requisitos técnicos, administrativos e financeiros, bem como a situação legal das respectivas tripulações.
A posição do Estado em relação às companhias de aviação, uma reserva estratégica a preservar, não é idêntica aos outros meios de transporte. Por exemplo, em via marítima, os “pavilhões de conveniência” são livremente escolhidos pelos armadores, cuja preferência depende do regime fiscal que lhes é aplicado. Na União Europeia (UE), o estatuto nacional das aeronaves impõe obrigações uniformes extensivas a todos os Estados-membros.
A liberalização na aviação comercial tratou-se de um conceito herdado no agitado decénio de 1970, nos EUA, que viria a ser transferido para a UE e alguns países da Ásia, cerca de 20 anos mais tarde. No entanto, foi a experiência norte-americana que evitou que se cometessem os erros que levaram à falência de mais de 200 companhias de aviação, só nos EUA, incluindo a PanAm, pioneira e líder mundial da aviação comercial.
Torna-se importante frisar no contexto da aviação o significado de liberalização, conceito ligado à deregulation, apesar de o seu sentido ser mais restritivo. A sua implementação não resultou apenas de uma mudança ideológica, mas da pragmática constatação daquilo que foi fruto da gestão ruinosa das companhias de aviação públicas. O processo de gestão tinha sido incompatível com estratégias adequadas à aviação e da necessidade de pronta implementação, requerida com as rápidas flutuações dos mercados. O termo deregulation não é sinónimo de relaxamento na regulamentação. Se compararmos esta expressão anglo-saxónica com a prática jurídica do Reino Unido, verificamos que deregulation significa “o poder de legislar”, “rulemaking”. O Estado, impulsionado pela liberalização e deregulation, transformou o paradigma político-jurídico intervencionista em económico-liberal. Com a privatização, ou seja, a passagem das companhias de aviação das entidades públicas para as privadas, fica o Estado liberto dos pesados encargos para o erário público.
As despesas operacionais e de investimento ficaram a pertencer ao sector privado, distanciou-se o Estado dos conflitos laborais, próprios desta indústria. A gestão, na alçada dos operadores aéreos privados, passou a tomar múltiplas formas, assente em critérios empresariais, ao tirar o máximo rendimento dos mercados, excepto quando o exercício do serviço público viesse a justificar um outro tratamento.
O desmoronar das fronteiras, a aceleração da comunicação e crescente mobilidade trouxeram novos actores públicos e privados, bem como as empresas transnacionais, grandes obreiras na agilização do tráfego de passageiros e carga, num mundo globalizado. As companhias de bandeira, agora privatizadas, legacy carriers, continuaram a usufruir dos mesmos privilégios nos aeroportos nacionais, como os slots ou na escolha de horários.
O modelo da aviação comercial que vigorou por mais de 40 anos e que se destinava a uma pequena elite privilegiada de passageiros veio a democratizar-se, com “a abertura a todos” (Tony Fernandes, Air Asia), fruto da liberalização. O Estado, ao exercer apenas as funções alargadas de regulador, não abdicou da defesa dos interesses nacionais, interferindo apenas em momentos de grande perturbação económica ou social. Passou a haver uma maior supervisão nas áreas preservação da natureza, das normas de concorrência, dos direitos dos passageiros e do estatuto do pessoal dos operadores. A fiscalização passou a ser mais eficiente, bem como os processos de inspecção e a certificação.
Neste novo ambiente, o preço passou a ser o principal critério de preferência na escolha dos passageiros. As companhias de aviação passaram a debater-se com o dilema de disponibilizar serviços a um menor custo, obtendo margens mínimas de rentabilidade, numa indústria fortemente competitiva, o que veio a causar um embaraço à gestão.
A pesada estrutura organizativa vertical, das companhias de bandeira de serviço completo (FSC), exigindo capital intensivo em investimentos, não compreendeu a essência do actual sistema de aviação.
Por sua vez, os sindicatos rejeitam a flexibilidade de horários, mobilidade de funções e reclamam “direitos adquiridos”, posição estática, fortemente penalizadora dos orçamentos.
A solução deste dilema preço/serviço passou por “uma nova forma de viajar”, no médio curso, praticado pelas companhias de baixo custo, LCC, no frills, isto é, sem “desperdícios”, mas continuando a voar em segurança.
Os LCC, companhias regionais privadas com frotas unificadas de equipamentos e dispondo de uma leve estrutura horizontal, permite a tomada de decisões em “tempo real”. As comunicações entre serviços e clientes são fáceis, ao usarem de preferência telemóveis, sms e Internet e não dispendiosos sistemas como nas companhias FSC.
Os serviços adicionais são pagos e estabelecem novos critérios de qualidade.
Os passageiros desvalorizam o seu conforto pela certeza de que não haverá o extravio das suas bagagens e se cumprirão rigorosamente os horários, “aeroporto a aeroporto”, sem qualquer responsabilidade nas eventuais ligações de voos.
As estratégias, o planeamento e as operações dos dois modelos referidos não são idênticos. Os FSC utilizam hubs internacionais, placas giratórias para a concentração de passageiros, com tráfego, frequentemente serviços prestados “hora a hora” (shuttles) ou comboios de alta velocidade, para estabelecerem ligações.
Um transportador FSC terá sempre custos e tempos operacionais muito superiores aos LCC, pois estes, na falta de equipamentos de voo, recorrem a contratos leasing, para colmatar necessidades sazonais ou rápidas mudanças em planeamento para ocupar rotas abandonadas pelos FSC, por falta de tráfego ou devido aos custos.

Fonte: Público 14 de março 2016
Luis S. Marques – Professor convidado da DAT (Depart. Aeronáutico e Transportes) e investigador na Universidade Lusófona